Faz alguns anos li um artigo na revista XIS (quando era editada com o Jornal Correio da Manhã) sobre a leitura que nunca mais esqueci. Ficou-me na memória a ideia que o autor passou com o que escreveu. Em vão já tinha procurado esse artigo, tendo a impressão que tinha guardado essa revista em particular. Procurando melhor, um pouco resultado de umas arrumações aqui por casa, encontrei-o. Foi escrito por Pedro Boucherie Mendes. Tomei a liberdade de o transcrever. Espero que gostem.
«Vivemos num tempo em que não há tempo. Por causa disso, ler tornou-se uma miragem, uma daquelas coisas que nos dizem poder mudar as nossas vidas, mas que adiamos sistematicamente. Ao mesmo tempo, e porque há cada vez menos quem o faça, ler também se transformou numa maldição. Por outro lado dizem-nos que devíamos ler mais e se não o fizermos ficaremos de algum modo incompletos. Como se nos escapasse alguma coisa do mundo, numa espiral de ansiedade que transforma a leitura em algo de quase sagrado.
A leitura deve ser tudo menos uma obrigação. A leitura, qualquer leitura, é sempre uma descoberta. Mais, é uma descoberta muito própria de cada um. Não há duas leituras iguais. É um momento da mais pura intimidade. Quando lemos estamos sós. Tudo à nossa volta pára e deixa de importar, porque o poder da palavra se sobrepõe a tudo o resto. A leitura é o mais poderoso dos feitiços. As palavras levam-nos a sítios inimagináveis, apresentam-nos as pessoas mais extraordinárias, dão sustento aos nossos sonhos, tiram-nos literalmente o tapete debaixo dos pés e levam-nos para longe. Um longe que pode ser ao virar da esquina, mas que é sempre distante e sempre nosso.
A cultura da imagem, pelo contrário, é mais superficial. Não porque exista qualquer coisa de errado ou de menos certo ou até de incompleto, mas porque a imagem nos limita a imaginação. Está lá quase sempre tudo, o que significa que não é preciso ir dentro de nós buscar mais qualquer coisa, porque as imagens são completas em si mesmas, e ainda por cima colectivas: vemos todos o mesmo. Na palavra não. Quando um escritor escreve sobre alguém ou algum sítio, por exemplo, a liberdade é toda nossa para imaginarmos um "alguém" que só nós podemos ver e que será sempre diferente ao "alguém" de outra pessoa. Até mesmo diferente do "alguém" que o escritor concebeu. É esse o poder da leitura. É um poder absoluto e ilimitado que nos dá todo o direito de arrumar dentro de nós aquilo que o escritor escreveu, a partir da história que estamos a ler.
Mesmo que a nossa leitura não seja ficção, mesmo nos factos, temos a liberdade de desenhar alguns dos contornos à nossa maneira. É um poder bom porque até o abuso, o exagero do uso dessa liberdade, nunca resulta mal. Afinal é a nossa leitura e podemos fazer dela o que muito bem entendermos.
Ler absorve, descansa e estimula. Ler nunca é mau. Não há livros bons ou livros maus. Isso depende só de cada um de nós. Claro que há livros que se calhar devíamos ler um dia, mas isso é só porque têm uma importância que as mil e uma leituras dos outros lhe deram e que esses leitores quiseram partilhar connosco. Esses livros, sejam clássicos ou simplesmente livros que têm um êxito súbito, até podem nem ser os melhores. São livros que criam a ansiedade da leitura e fazem com que nos sintamos obrigados a lê-los. Nessas alturas o melhor é só os ler se verdadeiramente nos apetecer. Só assim poderemos aproveitar ao máximo a riqueza desse livro.
Não ler também não é necessariamente mau. Os livros esperam por nós e têm toda a paciência do mundo. Uma página por dia é tão bom como duas, três, cinco ou dez. O livro faz todo o trabalho por nós. O livro abre-se e seduz, agarra-nos e surpreende-nos. O livro cativa sempre, mesmo que o deixemos de parte durante algum tempo. Porque um livro tem sempre tempo.
Ler é também liberdade para o espírito. É como andar de carroussel com as palavras. É sempre emocionante ainda que possa ter momentos desconfortáveis aqui e ali. Ler é tão livre que até podemos sair do carroussel a meio. Ningué é obrigado a ler um livro até ao fim ou sequer a gostar do livro. E podemos ler os livros que mais gostamos vezes sem conta com a garantia de que será sempre uma experiência diferente. Ler é partilhar, é saber mais, é viver melhor. Ler é conseguir fazer tudo sem sair do mesmo lugar. Ler é abrir o nosso mundo. É mesmo assim.»
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